ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A
TRANSFERÊNCIA
Maria Otília Bento Holz
Com Freud a transferência nasce como
um conceito novo, pois é a psicanálise que o formaliza. Inicialmente Freud
(1888) se refere à transferência como sendo uma mudança do sintoma histérico de
um lado para outro do corpo, um deslocamento. Cada vez mais, ele reforça sua
constatação de que a cura estava na recuperação da relação simbólica entre a
causa precipitante do trauma e o fenômeno patológico. No tratamento a linguagem
substituía a ação, e a emoção podia ser ab-reagida. Assim Freud avança na busca
do deciframento do sintoma.
Em Estudos sobre Histeria (1895), a
transferência recebe nova acepção,
passando a ser considerada não mais como uma ligação deslocada, mas como a
tendência de o paciente envolver o analista no trabalho, de tal modo, até que
apresentasse um caráter perturbador com o surgimento do amor transferencial.
Esse apaixonamento do paciente pelo
analista cria dificuldades técnicas no atendimento. Freud observa que quando se
trata psicanaliticamente um paciente neurótico, surge nele um estranho fenômeno
chamado transferência, ou seja, o paciente consagra ao analista sentimentos
afetuosos ou hostis não justificados em relações reais.
Em 1912, Freud escreve o texto
Dinâmica da Transferência, dedicado ao exame teórico do que acontece na relação
transferencial. Inicia dizendo que o ser humano é produto de fatores inatos e
das experiências infantis. E que ambos propiciam a aquisição de um estilo de
vida, como um clichê estereotípico.
O sucesso do trabalho terapêutico
está em poder contar com a colaboração do paciente quanto a seguir as regras
analíticas. Assim, o analista poderá dar novo significado transferencial (Übertragungsbedeutung) a todos os
sintomas da doença. A neurose comum do paciente é então substituída por uma
neurose de transferência que possibilita a cura.
A neurose de transferência é uma
neurose artificial que se constitui em torno da relação com o analista. É uma
nova edição da neurose clínica. A elucidação da neurose de transferência mostra
uma revivência da neurose infantil.
Os fenômenos da transferência nos
neuróticos parecem mostrar, pela compulsão à repetição, um destino cruel,
implacável, ao qual essas pessoas estão submetidas. Para a psicanálise, tal
destino resulta, em grande parte, da posição em que elas se colocam na vida e
das influências infantis primitivas. Isso acarreta que as pessoas lidem da
mesma maneira com as mais diversas situações, encontrando um mesmo denominador
comum: seja uma ingratidão, seja uma injustiça, seja um desamor, enfim, algo
que as decepcione como um dia em criança também aconteceu.
No texto Análise Terminável e
Interminável (1937), Freud questiona o poder da transferência. Que a influência
do analista sobre o paciente tenha sido tão marcante que as mudanças ficam
garantidas, mostrando com isso um êxito absoluto no trabalho. Será isso
possível? Podemos falar de desfechos bem-sucedidos, nos quais os distúrbios
neuróticos foram aclarados e não retornaram, nem foram substituídos por outras
perturbações do mesmo tipo. Nesses casos sabemos que o sucesso alcançado deveu-se
ao fato de o ego do paciente não ter sido demasiadamente alterado e a origem do
distúrbio ter sido mais traumática que pulsional, embora se tenha presente que
a etiologia de todo distúrbio neurótico é mista. Freud atribui a alteração
desfavorável do ego à luta defensiva diante das intempéries da vida.
É pela transferência que conseguimos
nos aliar ao ego da pessoa em tratamento e incluir nele partes do id que ainda
não estão controladas. Mas para isso teríamos que contar com um ego normal o
que não é fácil, pois as pessoas só são normais na média.
No manejo da transferência, vamos
ter que lidar com as alterações do ego, entendendo-as como um desvio quanto à
ficção de um ego normal que facilitaria o trabalho de análise. Freud considera
que é no paciente que está o saber sobre sua verdade e é pela relação
transferencial que ele, paciente, pode ter acesso a essa verdade.
Todas essas dificuldades têm na sua
base o mesmo denominador comum: o fenômeno da transferência permeado por
características de um amor primevo e da busca constante de satisfação.
É a partir da leitura de Freud que
Lacan inicia uma nova jornada de trabalho e questionamentos sobre a psicanálise,
em particular sobre a transferência e a posição do analista em seu manejo,
desde a função de sujeito suposto saber (SsS).
Miller (2006) fala de muitos
sujeitos suposto saber. O analisante é o nosso primeiro sujeito suposto saber –
o que ele traz até nós. Damos a palavra. O próprio analista é o segundo SsS –
suposto a interpretar. Aí a importância da introdução do analisante na
associação livre, mediante a qual a fala vem enlaçar-se ao gozo. Esse não sei o
que digo, por meio da associação livre, implica a posição de inconsciente como
potência de cifração – terceiro SsS. É o inconsciente intérprete que se
transfere para o analista. Isso é tomar a transferência como transferência de
saber (inconsciente transferêncial).
Para Lacan, é na comunicação de
inconscientes que deveríamos apostar. É ela que permite ao analista apercepções
decisivas e lhe proporciona boas condições para o trabalho e não a longa
experiência do analista nem seu conhecimento teórico.
O analista é aquele para quem o
paciente fala livremente, embora essa fala não seja tão livre assim. Essa
liberdade desemboca numa fala plena que lhe seria dolorosa, pois falaria da sua
verdade. “Nada mais temível do que dizer algo que possa ser verdadeiro. Pois
logo se transformaria nisso, se o fosse, e Deus sabe o que acontece quando
alguma coisa por ser verdadeira, já não pode recair na dúvida” (Lacan, 1966).
A palavra guarda em si um engodo.
Como então situar os afetos e as referências imaginárias em relação a ela,
quando se define a ação da transferência na análise? E nada mais difícil do que
o acosso dos fenômenos transferenciais que geram resistências.
Lacan se refere à questão do analisante
perante o analista – “O que ele quer?” (Che
vuoi?) –, evidenciando a transferência do lado do analista, abrindo um
questionamento sobre a contratransferência.
No conceito comum,
contratransferência seria a soma dos preconceitos, das dificuldades, dos
embaraços, das emoções, da falta de formação do analista a um dado momento do
processo dialético.
Lacan critica as várias posições a
respeito da contratransferência, inclusive aquela que considera uma nova
partida. Esta diz respeito ao objeto a, o agalma do qual o analista é o
portador e que enlaça a transferência no amor. O agalma, esse objeto brilhante,
está carregado de um peso de símbolos e trocas. O agalma, esse objeto
fundamental de que se trata na análise do sujeito e que constitui a fantasia
fundamental, instaura o lugar onde o sujeito pode se fixar como desejante. Na
verdade, para Lacan, uma contra-indicação seria aquela em que o analista
colocaria, por um instante, seu próprio objeto parcial, seu agalma, no
paciente. Isso seria uma contratransferência.
A transferência em psicanálise teria
seu efeito mediante o ato do analista a partir da inspiração da pulsão em se
fazer falar desde esse lugar no Outro. É o que sai do corpo em busca de uma
resposta? (E a única resposta possível se dá por meio do significante.)
Lacan fala desse ponto de encontro
com o real, o vazio do sujeito referido ao objeto perdido das Ding, isso que
não pode ser dito nem reencontrado, embora sempre buscado. É um ponto que
escapa de qualquer influência que a análise possa exercer sobre o analisante.
Há outra coisa em das Ding ,
é um verdadeiro segredo em relação ao princípio de realidade. O princípio de
realidade funciona como que isolando o sujeito da realidade.
É isso que a biologia mostra, que o
ser vivo é regido por um processo de homeostase, de isolamento em relação à
realidade. O sujeito é determinado por esse des
Lebens (estado de urgência da vida). Alguma coisa quer. Daí a questão da
sugestão, algo que no paciente é sugerido “(...) alguma coisa tria, cria, de
tal maneira que a realidade só é entrevista pelo homem, pelo menos no estado
natural, espontâneo, de uma forma profundamente escolhida” (Lacan, 1959 /
60:63).
A presença do passado, realidade da transferência,
é algo que por si só se impõe. Pode-se dizer que é uma presença em ato uma
reprodução que nos leva a concluir que existe na manifestação da transferência
algo criador.
Em seu seminário (1991) sobre a transferência,
Antonio Di Ciccia refere-se a três vertentes da transferência: transferência
imaginária, simbólica e real. A
transferência imaginária é um obstáculo à cura, e Lacan questiona até que ponto
ela entra nas condições pelas quais é possível uma psicanálise.
Para
Lacan, em seu primeiro ensino, a transferência no simbólico é um fator de cura.
Ele a coloca em paralelo à repetição. Uma repetição que é da ordem simbólica em
relação às figuras parentais ou substitutas.
A transferência real é referida por
Lacan como a aposta em ato da realidade do inconsciente. Na transferência em
relação ao real, o analista encarnará um lugar inteiramente específico e único
para o analisante. A isso poderíamos chamar de mistérios da transferência – de
se oferecer à interpretação mais do que oferecer-se a interpretar. O analista
encontra-se proscrito a assumir a função de presença.
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FREUD, S. (1910) Transferência
e Resistência, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XI.
___________
(1912) A Dinâmica da Transferência, E.S.B.,v.
XII.
___________
(1916) Transferência (Conferência
XXVII), E.S.B.,v.XVI.
___________
(1920) Revisão da Teoria das Pulsões,
E.S.B., v.XVIII.
___________
(1937) Análise terminável e
interminável, E.S.B., v.XXIII.
LACAN, J.
(1964) Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, O Seminário, livro 11, Rio de Janeiro, Zahar
Ed., 1979.
MILLER, J.
A.(1984) Percurso de Lacan – Uma
Introdução. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1988.
___________(2006) Nosso Sujeito Suposto Saber – Opção Lacaniana nº 47. Rio de
Janeiro, Ed. Eólia, 2006.
DI CIACCIA, Antônio. Seminário: A Transferência. in Letras da Coisa. Curitiba: Coisa Freudiana,
1992.
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