domingo, 6 de março de 2016


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A TRANSFERÊNCIA

                                                                                                Maria Otília Bento Holz

            Com Freud a transferência nasce como um conceito novo, pois é a psicanálise que o formaliza. Inicialmente Freud (1888) se refere à transferência como sendo uma mudança do sintoma histérico de um lado para outro do corpo, um deslocamento. Cada vez mais, ele reforça sua constatação de que a cura estava na recuperação da relação simbólica entre a causa precipitante do trauma e o fenômeno patológico. No tratamento a linguagem substituía a ação, e a emoção podia ser ab-reagida. Assim Freud avança na busca do deciframento do sintoma.
            Em Estudos sobre Histeria (1895), a transferência  recebe nova acepção, passando a ser considerada não mais como uma ligação deslocada, mas como a tendência de o paciente envolver o analista no trabalho, de tal modo, até que apresentasse um caráter perturbador com o surgimento do amor transferencial.
            Esse apaixonamento do paciente pelo analista cria dificuldades técnicas no atendimento. Freud observa que quando se trata psicanaliticamente um paciente neurótico, surge nele um estranho fenômeno chamado transferência, ou seja, o paciente consagra ao analista sentimentos afetuosos ou hostis não justificados em relações reais.
            Em 1912, Freud escreve o texto Dinâmica da Transferência, dedicado ao exame teórico do que acontece na relação transferencial. Inicia dizendo que o ser humano é produto de fatores inatos e das experiências infantis. E que ambos propiciam a aquisição de um estilo de vida, como um clichê estereotípico.
            O sucesso do trabalho terapêutico está em poder contar com a colaboração do paciente quanto a seguir as regras analíticas. Assim, o analista poderá dar novo significado transferencial (Übertragungsbedeutung) a todos os sintomas da doença. A neurose comum do paciente é então substituída por uma neurose de transferência que possibilita a cura.
            A neurose de transferência é uma neurose artificial que se constitui em torno da relação com o analista. É uma nova edição da neurose clínica. A elucidação da neurose de transferência mostra uma revivência da neurose infantil.
            Os fenômenos da transferência nos neuróticos parecem mostrar, pela compulsão à repetição, um destino cruel, implacável, ao qual essas pessoas estão submetidas. Para a psicanálise, tal destino resulta, em grande parte, da posição em que elas se colocam na vida e das influências infantis primitivas. Isso acarreta que as pessoas lidem da mesma maneira com as mais diversas situações, encontrando um mesmo denominador comum: seja uma ingratidão, seja uma injustiça, seja um desamor, enfim, algo que as decepcione como um dia em criança também aconteceu.
            No texto Análise Terminável e Interminável (1937), Freud questiona o poder da transferência. Que a influência do analista sobre o paciente tenha sido tão marcante que as mudanças ficam garantidas, mostrando com isso um êxito absoluto no trabalho. Será isso possível? Podemos falar de desfechos bem-sucedidos, nos quais os distúrbios neuróticos foram aclarados e não retornaram, nem foram substituídos por outras perturbações do mesmo tipo. Nesses casos sabemos que o sucesso alcançado deveu-se ao fato de o ego do paciente não ter sido demasiadamente alterado e a origem do distúrbio ter sido mais traumática que pulsional, embora se tenha presente que a etiologia de todo distúrbio neurótico é mista. Freud atribui a alteração desfavorável do ego à luta defensiva diante das intempéries da vida.
            É pela transferência que conseguimos nos aliar ao ego da pessoa em tratamento e incluir nele partes do id que ainda não estão controladas. Mas para isso teríamos que contar com um ego normal o que não é fácil, pois as pessoas só são normais na média.
            No manejo da transferência, vamos ter que lidar com as alterações do ego, entendendo-as como um desvio quanto à ficção de um ego normal que facilitaria o trabalho de análise. Freud considera que é no paciente que está o saber sobre sua verdade e é pela relação transferencial que ele, paciente, pode ter acesso a essa verdade.
            Todas essas dificuldades têm na sua base o mesmo denominador comum: o fenômeno da transferência permeado por características de um amor primevo e da busca constante de satisfação.
            É a partir da leitura de Freud que Lacan inicia uma nova jornada de trabalho e questionamentos sobre a psicanálise, em particular sobre a transferência e a posição do analista em seu manejo, desde a função de sujeito suposto saber (SsS).
            Miller (2006) fala de muitos sujeitos suposto saber. O analisante é o nosso primeiro sujeito suposto saber – o que ele traz até nós. Damos a palavra. O próprio analista é o segundo SsS – suposto a interpretar. Aí a importância da introdução do analisante na associação livre, mediante a qual a fala vem enlaçar-se ao gozo. Esse não sei o que digo, por meio da associação livre, implica a posição de inconsciente como potência de cifração – terceiro SsS. É o inconsciente intérprete que se transfere para o analista. Isso é tomar a transferência como transferência de saber (inconsciente transferêncial).
            Para Lacan, é na comunicação de inconscientes que deveríamos apostar. É ela que permite ao analista apercepções decisivas e lhe proporciona boas condições para o trabalho e não a longa experiência do analista nem seu conhecimento teórico.
            O analista é aquele para quem o paciente fala livremente, embora essa fala não seja tão livre assim. Essa liberdade desemboca numa fala plena que lhe seria dolorosa, pois falaria da sua verdade. “Nada mais temível do que dizer algo que possa ser verdadeiro. Pois logo se transformaria nisso, se o fosse, e Deus sabe o que acontece quando alguma coisa por ser verdadeira, já não pode recair na dúvida” (Lacan, 1966).
            A palavra guarda em si um engodo. Como então situar os afetos e as referências imaginárias em relação a ela, quando se define a ação da transferência na análise? E nada mais difícil do que o acosso dos fenômenos transferenciais que geram resistências.
            Lacan se refere à questão do analisante perante o analista – “O que ele quer?” (Che vuoi?) –, evidenciando a transferência do lado do analista, abrindo um questionamento sobre a contratransferência.
            No conceito comum, contratransferência seria a soma dos preconceitos, das dificuldades, dos embaraços, das emoções, da falta de formação do analista a um dado momento do processo dialético.
            Lacan critica as várias posições a respeito da contratransferência, inclusive aquela que considera uma nova partida. Esta diz respeito ao objeto a, o agalma do qual o analista é o portador e que enlaça a transferência no amor. O agalma, esse objeto brilhante, está carregado de um peso de símbolos e trocas. O agalma, esse objeto fundamental de que se trata na análise do sujeito e que constitui a fantasia fundamental, instaura o lugar onde o sujeito pode se fixar como desejante. Na verdade, para Lacan, uma contra-indicação seria aquela em que o analista colocaria, por um instante, seu próprio objeto parcial, seu agalma, no paciente. Isso seria uma contratransferência.
            A transferência em psicanálise teria seu efeito mediante o ato do analista a partir da inspiração da pulsão em se fazer falar desde esse lugar no Outro. É o que sai do corpo em busca de uma resposta? (E a única resposta possível se dá por meio do significante.)
            Lacan fala desse ponto de encontro com o real, o vazio do sujeito referido ao objeto perdido das Ding, isso que não pode ser dito nem reencontrado, embora sempre buscado. É um ponto que escapa de qualquer influência que a análise possa exercer sobre o analisante. Há outra coisa em das Ding, é um verdadeiro segredo em relação ao princípio de realidade. O princípio de realidade funciona como que isolando o sujeito da realidade.
            É isso que a biologia mostra, que o ser vivo é regido por um processo de homeostase, de isolamento em relação à realidade. O sujeito é determinado por esse des Lebens (estado de urgência da vida). Alguma coisa quer. Daí a questão da sugestão, algo que no paciente é sugerido “(...) alguma coisa tria, cria, de tal maneira que a realidade só é entrevista pelo homem, pelo menos no estado natural, espontâneo, de uma forma profundamente escolhida” (Lacan, 1959 / 60:63).
            A presença do passado, realidade da transferência, é algo que por si só se impõe. Pode-se dizer que é uma presença em ato uma reprodução que nos leva a concluir que existe na manifestação da transferência algo criador.
            Em seu seminário (1991) sobre a transferência, Antonio Di Ciccia refere-se a três vertentes da transferência: transferência imaginária, simbólica e real. A transferência imaginária é um obstáculo à cura, e Lacan questiona até que ponto ela entra nas condições pelas quais é possível uma psicanálise.
         Para Lacan, em seu primeiro ensino, a transferência no simbólico é um fator de cura. Ele a coloca em paralelo à repetição. Uma repetição que é da ordem simbólica em relação às figuras parentais ou substitutas.
            A transferência real é referida por Lacan como a aposta em ato da realidade do inconsciente. Na transferência em relação ao real, o analista encarnará um lugar inteiramente específico e único para o analisante. A isso poderíamos chamar de mistérios da transferência – de se oferecer à interpretação mais do que oferecer-se a interpretar. O analista encontra-se proscrito a assumir a função de presença.

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FREUD, S. (1910) Transferência e Resistência, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XI.
___________ (1912) A Dinâmica da Transferência, E.S.B.,v. XII.
___________ (1916) Transferência (Conferência XXVII), E.S.B.,v.XVI.
___________ (1920) Revisão da Teoria das Pulsões, E.S.B., v.XVIII.
___________ (1937) Análise terminável e interminável, E.S.B., v.XXIII.
LACAN, J.    (1964) Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, O Seminário, livro 11, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1979.
MILLER, J. A.(1984) Percurso de Lacan – Uma Introdução. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1988.
___________(2006) Nosso Sujeito Suposto Saber – Opção Lacaniana nº 47. Rio de Janeiro, Ed. Eólia, 2006.

DI CIACCIA, Antônio. Seminário: A Transferência. in Letras da Coisa. Curitiba: Coisa Freudiana, 1992.

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