domingo, 6 de março de 2016



VIOLÊNCIA E AGITAÇÃO DOS CORPOS, POR ONDE “ISSO” PASSA?

                                                                           Maria Otília Bento Holz[1]



“O corpo e suas agitações: como estas últimas impulsam a fala que, como nos ensina Lacan, não se restringe de modo algum à verbalização, tampouco a um uso propriamente funcional. Usos do corpo para fazer falar falar-se... e o silêncio dos corpos...” [2]

Referir-se à agitação do corpo é referir-se à pulsão e seus efeitos, como bem mostram alguns versos da música de Chico Buarque: O que será (À flor da pele)

O que será que me dá

Que me bole por dentro, será que me dá

O que não tem medida, nem nunca terá

O que não tem remédio, nem nunca terá

O que não tem receita

O que será que será

O que não tem descanso, nem nunca terá

O que não tem limite, nem nunca terá

O que não tem vergonha, nem nunca terá

O que não tem governo, nem nunca terá

O que não tem juízo.



Freud nomeia a pulsão (Trieb) como uma energia que quer sempre se satisfazer, custe o que custar. Pulsão, conceito limite para dar conta daquilo que o sujeito experimenta como impulso incontrolável. No seu polimorfismo a pulsão pode manifestar-se desde a ordem do prazer até a agressividade e a violência. A violência como sintoma social da época são maneiras pelas quais se vive a pulsão de morte teorizada por Freud, em 1920, e que se declina em ódio, segregação, destruição, num gozo ilimitado. É o perigo do Real como afluxo incontrolável de estímulos.[3]





A violência de hoje é considerada uma nova ordem simbólica que evidencia uma desordem do real. É uma violência privada, individualizada, contingente do individualismo em massa.[4]

A violência pode produzir-se no próprio sujeito pelo uso indiscriminado de drogas, alcoolismo, automutilação, suicídio etc., ou em uma relação inter-humana quando não prevalece a fala. Quando disparada a violência, é impossível reprimi-la, pois não se encadeia à articulação significante, atingindo uma dimensão real. A cocaína leva à excitação, a essa vida que vai além da vida do corpo, conduzindo-o a uma agitação sem rumo. O craque é ainda pior porque produz efeitos imediatos ao entrar no circuito sanguíneo. No alcoolismo, a autoviolência parece como um suicídio disfarçado. Encontramos ainda novas experiências do que é o insuportável das manifestações da pulsão de morte. Existem formas mais efetivas de autoviolência como enforcar-se, atirar-se na frente de um trem.[5]

Lacan (1970) aborda a violência em relação à ascensão do objeto a ao zênite social. O objeto a passou a ser a bússola da civilização de hoje, comandando o discurso hipermoderno. Resultado do enfraquecimento da autoridade paterna, pois o Nome do Pai não é mais capaz de sustentar uma regulação simbólica o que incidiu sobre os modos de gozo da família. A taxa de violência contra as crianças e os abusos sexuais pedofílicos inclui a violência praticada pelos próprios pais ou seus substitutos.[6]

O que chamamos de feminização do mundo é a manifestação da ausência de exceção, seja a exceção paterna, seja a exceção dada pela função fálica, o que Lacan chamou de uma ordem de ferro, em que impera a ferocidade do supereu, que exige o máximo de gozo para todos.

A atualidade nos mostra que os fenômenos de violência estão vinculados às falhas do simbólico, à sua precariedade. Nos impasses da cultura surgem os novos reais dos quais o discurso da civilização hipermoderna nos dá testemunho. Testemunho este também evidenciado no comportamento sexual humano ao conservar parte do semblante animal, com a diferença que esse semblante se veicula num discurso.

Nos limites do discurso (...), de vez em quando, “existe o real”, nos diz Lacan.

E “isso” pode ser chamado de passagem ao ato que rompe com o Outro e a violência aparece em seus diferentes tipos, como a violação, o femicídio, o vandalismo, entre outros; maneiras pelas quais uma época vive a pulsão de morte. São sujeitos em que a passagem ao ato é uma constante. Como alguém que sob o efeito da droga ou álcool pode exercer uma violência extrema, desbordada, podendo até matar o seu semelhante. Por isso, no mundo atual temem-se o roubo, a bala perdida, e a violência passa a ser fruto de uma contingência que aponta para a voracidade da pulsão, para um gozo que escapa à lógica fálica;[7] como bem nos diz Marcelo Veras.

Como consequência disso tudo, o sujeito fica situado numa debilidade para qual a psicanálise deverá responder, não o deixando sob os cuidados apenas do social, sanitário e jurídico, pois ao sustentar um furo no saber, dá ao sujeito a chance de construir seu próprio saber. A psicanálise apontaria a real dimensão do estrago.



Vitor e a violência contra si mesmo.

Esta vinheta aponta para um homem de mais de trinta anos, solteiro, que ainda mora com a mãe. Tem um filho pequeno que não mora com ele.

Vitor é filho de mãe solteira com um homem casado, alcoolista. Foi criado pela mãe e avós maternos, pois moravam juntos. Chamava de pai o avô, que também bebia.

Aos onze anos Vitor começou sua vida noturna, indo a festinhas e bebendo cerveja. Cresceu no meio de adultos, parentes e amigos, que bebiam e se drogavam. Mais tarde ele passou a fazer o mesmo. A vida de Vitor centrou-se numa constante autoviolência. Foi preso por tráfico de drogas, acidentou-se várias vezes por dirigir alcoolizado, frequentava e permanecia dias nos prostíbulos, onde deixava o seu dinheiro. Em tudo que fazia tinha o respaldo da mãe, que pagava as dívidas dele e lhe dava dinheiro para se drogar. A melhor autentificação para o alcoolista e drogado, desta “mal-dita” pulsão, é o imperativo sem lei desse Outro, onipotente, insaciável, a bombear o gozo do corpo, que é tomado por uma constante agitação.[8]



[1] Psicanalista, Mestre em Psicologia Escolar com área de concentração em Psicanálise, Correspondente da Delegação Paraná da EBP.
[2] Comentário de Jésus Santiago, Ram Mandil e Sérgio Laia. Responsáveis pelo Seminário de Leitura do Curso de Orientação Lacaniana – Sede da EBP-MG (07 a 13/10/2013).
[3] Vieira, M. A. (2013) A violência: sintoma social da época. A violência do trauma e seu sujeito, Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.81
[4] Alvarenga, E. (2013) A violência: sintoma social da época. Apresentação, Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.09. 
[5] Laurent, É. (2013)  A violência: sintoma social da época. Entrevista:”Psicanálise violência: sobre as manifestações da pulsão de morte”, Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.37.
[6] Marotta, M. (2011) A Ordem Simbólica do Século XXI. Não é mais o que era. Quais as consequências para o tratamento. Silicet. Violência VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, AMP. Escola Brasileira de Psicanálise. Editora Scriptum, p.415/416

[7] Veras, M. (2013) A violência: sintoma social da época. Atualidades lacaniana, a violência entre o grande Outro e o objeto. Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.107. 
[8] Lecoeur (1992), B. O Homem Embriagado. Centro Mineiro de Toxicomania – FHEMIG, Belo Horizonte, MG, p.12.

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